Entendendo o sistema de recomendações da Netflix
Quantas vezes você já abriu a Netflix como solução para seu tédio e percebeu que entrou num buraco negro chamado "escolher o que assistir"?
Imagino que pelo menos algumas vezes. É um "problema" tão comum e relacionável que existem diversos sites e aplicativos criados para escolher um filme ou seriado na Netflix por você.
A questão é que a plataforma faz de tudo para te recomendar filmes e séries que você tenha uma alta probabilidade de assistir. E tentam deixar esse conteúdo o mais atraente possível para seus usuários, das formas mais inusitadas (e às vezes questionáveis) possíveis.
A importância desse sistema de recomendação é tão grande que a Netflix chegou a criar um concurso com uma premiação de U$ 1mi para quem conseguisse aumentar a efetividade das recomendações em apenas 10% (e jamais utilizou inteiramente o algoritmo do vencedor).
Então, mesmo com tantos esforços e investimentos, por que eles erram tanto?
Para tentar entender seus erros, devemos antes entender como funciona o processo de recomendação de conteúdo em plataformas online.
(Todo o material analisado na pesquisa pode ser encontrado no fim do texto)
O que são sistemas de recomendação?
Sistemas de recomendação são basicamente filtros com parâmetros específicos que tem como objetivo aumentar a probabilidade de que um usuário irá gostar de determinado conteúdo recomendado.
Pode-se destacar três tipos de sistemas de recomendação como os mais utilizados:
Content-based filtering (ou filtragem baseada em conteúdo):
Neste primeiro sistema, o objetivo é comparar o conteúdo entre si. A avaliação de similaridade é realizada através da definição de características que ajudam a estabelecer quão parecidas duas ou mais coisas são.
Um serviço de streaming que utiliza bastante esse tipo de filtro é o Spotify. Se você escuta uma música fora de uma playlist, quase que instantaneamente a plataforma gera uma rádio onde todas as próximas músicas se assemelham à primeira. Além disso, constantemente o Spotify cria playlists baseadas no que você escuta diariamente, com recomendações que tendem a ser muito efetivas.
Collaborative filtering (ou filtragem colaborativa):
Se no primeiro o que importa são as características do conteúdo, neste a opinião das pessoas sobre o conteúdo é a única coisa levada em consideração. O objetivo desse tipo de filtragem é aproximar pessoas ao gosto de outras pessoas, baseando-se em como elas avaliaram algo e tomando como fator comparativo entre outros espectadores.
Sites como o Reddit utilizam este tipo de filtragem para mostrar o que é popular entre todos os usuários, destacando em seu feed uma postagem não pelo seu conteúdo, mas pela sua aprovação.
Hybrid recommender system (ou sistema de recomendação híbrido):
Aqui, leva-se em consideração ambas as filtragens, transformando o conteúdo recomendado em algo muito mais personalizado para cada usuário. Não é só o conteúdo que você consome, é também a forma que você e outras pessoas com gosto parecido com o seu interagem com esse conteúdo.
Esse é o tipo de filtro que plataformas de vendas online e serviços de streaming de vídeo tendem a utilizar. Com a quantidade de dados que podem juntar de seus usuários, essas empresas sabem identificar o padrão de comportamento dos seus assinantes e recomendar produtos e conteúdo com maior probabilidade de gerar interesse.
Por exemplo, a Amazon realiza isso de forma explícita. Ao selecionar um produto, você terá acesso a produtos parecidos e também à aba de "outros usuários que compraram esse produto também compraram …"
No caso da Netflix, eles realizam esse processo de forma realmente combinada, sem dar muita informação sobre se a recomendação foi feita pela proximidade de um título a outro ou porque outros usuários parecidos com você gostaram.
Quando o algoritmo analisa seus dados e encontra quais títulos você é mais provável de assistir e gostar, passamos para o próximo passo do processo: convencer seus usuários a assistir a recomendação.
Se vira nos 90
De acordo com a Netflix, eles tem o período de 90 segundos a partir do momento em que um usuário entrou na plataforma para convencê-lo a assistir algo. Caso não consigam, a probabilidade é que este usuário saia da plataforma e encontre outra coisa para fazer.
Então, se você tivesse 90 segundos para convencer alguém a assistir um filme ou seriado, como você o faria?
Posicionamento
A primeira forma que a Netflix utiliza para sugerir um conteúdo para seus usuários é tomando cuidado com o posicionamento dos gêneros e títulos na interface. Vou explicar isso com um exemplo.
Caso você assista uma comédia romântica e a avalie positivamente, da próxima vez que você entrar na plataforma, provavelmente a primeira fileira que você verá será a de comédias românticas. Dentro dessa fileira, os primeiros filmes que você verá serão os que mais se identificam com o filme que você assistiu e avaliou ou que usuários do seu perfil também gostaram.
Se você só tem 90 segundos para ser convencido, nada como ver o que possivelmente vai te interessar logo que abrir a Netflix.
Teasers
Uma imagem vale mais que mil palavras. E um vídeo, vale quantas?
A Netflix tem a noção de que teasers audiovisuais tem um efeito positivo na adesão de usuários a seu conteúdo, por isso é possível perceber que, dependendo do equipamento onde você acesse a plataforma, teasers (pequenas prévias) dos filmes e seriados pré-selecionados irão rodar automaticamente.
Thumbnails
De acordo com as estatísticas liberadas pela Netflix, thumbnails (os pôsteres dos títulos) constituem 82% do foco do usuário na sua jornada dentro da plataforma. Essas pequenas imagens e teasers tem a difícil tarefa de se mostrarem interessantes em apenas 1,8 segundos, antes que o usuário veja a próxima recomendação. Assim, a plataforma tem a capacidade de alterar os pôsteres dos filmes de acordo com outras coisas que você assiste.
Um exemplo bem prático: caso você assista muito conteúdo no gênero de romance, é provável que diversos títulos sejam expostos com pôsteres apresentando casais, inclusive para filmes e séries que não possuem o casal como um ponto importante na sua história. Ou se você assiste muitos filmes com determinado ator, ele surgiria no poster de outros títulos em que estivesse presente mesmo que fosse um mero extra. E aí entramos em algo extremamente problemático.
Usuários começaram a perceber que, se vissem muitos filmes ou seriados com presença de atores negros, a plataforma automaticamente atualizaria seus pôsteres para mostrarem personagens negros que pudessem aparecer em outros títulos. O problema é que muitas vezes esses personagens possuíam uma importância ínfima na história, podendo aparecer por menos de 10 minutos em alguns filmes. Isto acabou gerando polêmica que, aparentemente, não foi nem notada pelo serviço de streaming, que nunca comentou sobre o caso.
Comportamento
A Netflix sabe absolutamente tudo sobre o seu comportamento dentro da plataforma. Que filmes você começa e não termina, o que você assiste mais de uma vez, o que você vê no começo da tarde ou na madrugada, nos finais de semana, etc. Assim, eles tendem a recomendar conteúdo que seja apropriado para o momento do dia em que você esteja assistindo, se baseando em outras oportunidades em que você utilizou a plataforma nesses horários.
Subgêneros
Comédia, drama, suspense e terror são gêneros bastante conhecidos e que englobam uma quantidade enorme de filmes. Mas e que tal "dramalhões sobre esportes", "dramas sensíveis adolescentes" e "filmes alto-astral sobre amadurecimento"?
Como uma forma de tornar mais assertiva a definição de filmes parecidos, a Netflix contratou pessoas para definirem o conteúdo de forma mais específica, criando gêneros bizarros, que impressionantemente conseguem aglomerar vários títulos.
Perfil
Por fim, a Netflix possui uma última forma de tentar adivinhar o que você poderia gostar de assistir. Como disse anteriormente, eles utilizam um sistema de recomendação híbrido, o que significa que a opinião de outros usuários são tão importantes (ou até mais) do que o que você assiste.
Logo, se você curte os filmes W, X e Y e um grupo específico de usuários também, a Netflix te enquadra nesse mesmo perfil de usuário e te recomenda um filme Z porque outras pessoas com o gosto próximo ao seu curtiram isso.
É notável o esforço da Netflix em tentar atrair seu usuário e deixá-lo imerso dentro de sua própria plataforma. Tecnicamente, seu algoritmo é tão inteligente que consegue disfarçar outros filmes para que aparentemente atendam ao seu gosto.
Ainda assim, eles falham bastante.
Os erros da Netflix
Analisando com cuidado o algoritmo de recomendação da Netflix, é possível perceber que, pelo menos em tese, ele tem o potencial para ser perfeito. A plataforma possui a capacidade de captar dados comportamentais como poucas outras disponíveis, conseguindo definir seus usuários com uma precisão enorme dependendo do engajamento e uso destes. Contudo, a forma com que a Netflix utiliza seus dados e quais considera mais relevantes podem ser a chave para entender porque você nunca quer assistir as suas recomendações.
Depende de avaliações
Apesar de não ser a mais impactante, esta questão merece destaque por ser um problema que eles não podem resolver: a Netflix precisa que seus usuários avaliem seu conteúdo.
A questão é que muitos usuários pouco se importam em avaliar os títulos que assistem. Portanto, eles não sabem se o título agradou ou não e começam a levar em consideração apenas o fato de que aquele usuário viu aquele filme/série daquele gênero, passando a recomendar outros títulos similares.
Recentemente, eles mudaram seu sistema de avaliação do conhecido "avalie em até 5 estrelas" para um simples "curtir/descurtir" (o que, inclusive, gerou intensas discussões nas redes) para tentar simplificar esse processo. Ainda não há como analisar se esta mudança gerou impacto positivo para a plataforma.
Presente > Passado
Um dos maiores problemas na consideração dos dados e na decisão sobre o que fazer com eles é que a Netflix tende a dar mais importância aos títulos que você assiste/avalia recentemente, em detrimento a coisas que você assistiu antes.
Essa hierarquia não faz sentido pelo simples motivo de que nem sempre você está avaliando algo que você assistiu recentemente e nem sempre você está assistindo algo que você gosta.
Por exemplo, se você avalia positivamente um filme de comédia besteirol que você viu no cinema 5 anos atrás, mas o filme só entrou agora no catálogo, a Netflix assume que você o assistiu recentemente e a importância do gênero de besteirol aumenta, ganhando destaque na interface da plataforma. Ou se você começa a assistir uma comédia romântica (mesmo que seja a primeira que você vê na plataforma), ele tende a recomendar outras comédias românticas como se fosse um dos seus gêneros favoritos.
Uma forma de solucionar isto seria levando em consideração o "conjunto da obra", ou seja, todo o histórico de uso do usuário, sem hierarquizar o que você vem assistindo recentemente como mais importante de forma tão abrupta.
Perfil
Entramos aqui em um aspecto que, apesar de ser algo que faça a Netflix errar nas recomendações, é bastante necessário.
Como já explicado, a plataforma tenta enquadrar seus usuários em perfis se baseando no que elas avaliam positivamente. Assim, já que outros usuários que curtiram os filmes que você curtiu também gostaram de um outro título, esse título será recomendado para você.
O problema é que esse sistema discretamente sugere que as pessoas tem gostos previsíveis, o que não é possível determinar apenas por padrões de comportamento dentro da plataforma. Pessoas são muito mais complexas do que seu comportamento sugere.
Contudo, o sistema de perfil tem o lado positivo de te apresentar coisas novas que não sejam necessariamente atreladas a outras coisas que você já assistiu, uma vez que não leva em consideração as características desses títulos. Levando em consideração gostos próximos, a plataforma tem a possibilidade de "ousar" um pouco e sugerir coisas que você nem pensava em assistir (e acabar gostando delas).
Conteúdo original
Esse problema, apesar de bem irritante, é também bastante compreensível.
A Netflix era um serviço de aluguel de DVDs on-demand em que você não pagava multa por atraso na devolução. A partir de 2007, eles se tornaram um serviço de streaming online, o que revolucionou o mercado de consumo de vídeo e levou várias grandes empresas à falência por não conseguirem acompanhar seu ritmo (R.I.P. Blockbuster).
Notando a mina de ouro encontrada pela Netflix, outras empresas e produtoras começaram a elaborar seus próprios serviços de streaming. O problema disso é que muitas dessas outras empresas e produtoras eram quem de fato criavam o conteúdo ofertado pela Netflix e, no caso de criarem um serviço de streaming próprio, acabariam esvaziando os títulos de sua plataforma (um problema que até hoje é muito impactante, principalmente quando você leva em consideração a presença da série "Friends" no catálogo da Netflix).
Percebendo o risco, a Netflix começou a investir literalmente bilhões de dólares na criação de conteúdos originais e exclusivos, tendo em 2013 lançado sua primeira série original: House of Cards. Contando com um elenco estrelado (e ainda não danificado por acusações de assédio) e sob o comando de um dos maiores diretores da atualidade, House of Cards rapidamente se tornou um sucesso de crítica e público, o que validou a hipótese de que eles tinham a capacidade de não só serem o maior canal de distribuição de filmes e seriados do mundo, como também de se tornarem uma das maiores produtoras de conteúdo audiovisual do mundo.
Rapidamente, a Netflix se afundou em empréstimos para conseguir criar uma verdadeira fábrica de seriados e filmes. Existe uma estimativa de que apenas em 2018, foram lançados mais de 1.500 horas de conteúdo original na plataforma. Em algum momento, a Netflix terá um catálogo muito forte e quase completamente dependente apenas de suas próprias produções. O problema é que esse dia ainda não chegou.
A Netflix acabou criando a cultura do "quanto mais, melhor", sem levar em consideração a qualidade do que está fazendo. Por muito tempo, era possível ouvir no boca-a-boca que "a Netflix não tem um filme original que preste". A questão é que, ainda hoje, 6 anos depois do lançamento de sua primeira série original, é possível contar nos dedos os títulos produzidos pela plataforma que realmente são excelentes, principalmente na esfera de longa-metragens.
E para aumentar a visibilidade de seus muito originais, eles parecem muitas vezes esquecer seu próprio algoritmo para recomendar filmes e séries se baseando unicamente na premissa de que são originais da plataforma. Afinal, quantas vezes você não viu um título e foi recomendado durante os créditos a assistir um original sem qualquer relação com o que você acabou de ver?
Obviamente, isso é uma forma de recomendar conteúdo muito propícia a falhar.
O que fazer?
A Netflix claramente tem controle sobre seus planos e sobre seu futuro. Não é uma empresa que arrisca sem ter noção das consequências e que muitas vezes paga pelos seus erros, cancelando diversas séries (e até sofrendo repúdio dos fãs desses títulos) e ajustando outras muitas coisas.
Seu algoritmo de recomendações é muito sólido, eles possuem os dados e o catálogo necessários para dar ótimas recomendações e têm a base de usuários disponível para testar infinitas vezes vários detalhes que ajudariam a torná-las cada vez melhores.
Então, o que falta para, de fato, a Netflix ter um poder de recomendação melhor?
A resposta é bem mais simples do que parece. O que falta no sistema de recomendação da Netflix é a confiança do usuário nas recomendações. E isso não será gerado através de um algoritmo.
O que falta na Netflix é a possibilidade de usuários se recomendarem filmes diretamente.
Quantas vezes um amigo ou amiga recomendou um título e você o procurou diretamente na plataforma sem se importar com a longa lista de recomendações? Quantas vezes em rodas de conversa as pessoas não se recomendam filmes que se tornam quase que automaticamente a primeira opção do que assistir quando se acessa a Netflix?
Tentando tornar tudo tão fácil e rápido, a Netflix acaba esquecendo o potencial social que filmes e séries possuem.
As pessoas amam assistir filmes, amam falar sobre filmes e amam sugerir filmes umas para as outras. Muitas vezes, as recomendações que fazem são infinitamente mais assertivas do que as da plataforma, justamente porque conhecer de fato o gosto de uma pessoa vai muito além de seu comportamento. Você tem a possibilidade de recomendar um filme ou série para um amigo com uma probabilidade muito maior de acertar do que a Netflix.
Não é aqui uma defesa para o surgimento de uma "nova rede social" dentro da Netflix. A plataforma não é um espaço apropriado onde as pessoas deveriam ou poderiam dar sua opinião, uma vez que abre espaço para vozes agressivas e retaliações que hoje em dia são cotidiano na indústria cinematográfica. Mas permitir uma interação mínima entre usuários e amigos poderia gerar um interesse maior na plataforma e, finalmente, recomendações que de fato interessam, vindas diretamente de pessoas em que você confia no gosto.
Caso você queira saber um pouco mais: